A morte e a morte de Quincas Berro DÁgua. Jorge Amado
“A triste verdade é que a vida humana consiste num complexo de opostos inseparáveis. Dia e noite, nascimento e morte, felicidade e miséria, bem e mal. ” Carl G. Jung
Joaquim Soares da Cunha, correto funcionário público, aposentado após 25 anos de trabalho, esposo modelo, a quem qualquer pessoa tiraria o chapéu.
Com seus 50 anos abandonou família, casa e hábitos de toda uma vida para se tornar Quincas Berro Dágua, um vagabundo, bêbado, frequentador de prostituição e morador de cortiço.
Jorge Amado com uma escrita gostosa e leve nos leva ao mundo e a morte dualista de Quincas Berro Dágua.
Essa narrativa é o tipo de história que poderia acontecer com qualquer pessoa e em qualquer família. O autor era muito fiel à oralidade e um exímio observador das pessoas e da sociedade.
A obra, com humor e leveza, trata da emergência do marginalizado e do reprimido, tipos sociais muito analisados pelo autor.
O livro segue com o dia em que Quincas amanhece morto em sua pocilga. Sua família é avisada e se dirige até o local.
Assim, seus parentes passam a discutir como seria o enterro e de onde o caixão partiria. O importante era não chocar a sociedade de Salvador e manter a memória do morto, como alguém muito digno.
A notícia da morte do protagonista chega aos ouvidos de seus amigos de boemia: Curió, Negro Pastinha, Cabo Martins e Pé de Vento, que se dirigem até o local onde a personagem está sendo velada.
Os amigos convencem um dos parentes que estava velando o corpo a ir descansar. Então, pegam o defunto e o leva para a rua. Quincas Berro Dágua estava em um de seus melhores momentos.
Trocam a roupa do mesmo, deram-lhe cachaça e o fizeram “dançar”, resgatando suas vestes de vadio e com ela dão a verdadeira morte para o boêmio.
Joaquim ganhou a alcunha de Quincas Berro Dágua quando entrou em uma venda e viu sobre o balcão uma garrafa, transbordando uma límpida cachaça. Encheu o copo e bebeu e assim deu um grito: É água!
Lendo essa obra, paira o tempo inteiro a pergunta: O que explica um homem com uma vida tranquila e pacata, de um momento para outro, sair de casa e nunca mais voltar? Largar o conforto de uma casa, a limpeza, comida boa para viver em um lugar fétido, utilizando roupas sujas e rasgadas?
Quantas vezes ouvimos histórias de pessoas parecidas de pessoas que tinham suas famílias, casas e empregos, e simplesmente decidiram viver nas ruas. Isso é extremamente comum.
Na verdade, essa narrativa representa a dualidade existente dentro de todos nós. Toda a gente tem lá no fundo um Quincas escondidinho, que pode ter características diversas.
Para o psicanalista Carl Gustav Jung o ser humano tem um lado sombra, que inclui tendências e desejos, que são rejeitados pelo indivíduo, incompatíveis com os padrões sociais.
Quando não é reconhecida pelo seu portador, se torna um lado muito perigoso da psique. A sombra nunca pode ser totalmente desconhecida e reprimida, pois pode se tornar extremamente forte e romper o Ego.
O lado sombra pode fazer qualquer pessoa extremamente convencional tornar-se um desconhecido para si mesmo. Sempre tentamos mostrar uma face positiva de nós mesmos, escondendo o lado “feio”.
Temos esse viés e é muito importante reconhece-lo e acima de tudo assumi-lo. Grandes ícones da paz e da bondade, como Gandhi, Mandela e Madre Tereza eram seres humanos comuns, mas que resolveram trabalhar suas sombras.
Outros como Hitler, Himmler, Stálin e Maníaco do Parque projetaram suas sombras nos outros.
O universo de desordem existente lá no fundo se aceito e trabalhado, pode nos render bastante criatividade e felicidade.